Quando a ignorância e ideologia caminham de mãos dadas, o desfecho é esse: preconceito e discriminação ; e o que ainda é pior: privação de formas de tratamento baseados em evidência científica para pacientes portadores de transtorno mental grave.

Formas essas de tratamento, que são capazes de salvar a vida e devolver (parcial ou totalmente) a funcionalidade daqueles quem sofrem de patologias que não foram responsivas (ou que responderam parcialmente) a outras estratégias de tratamento farmacológico e psicoterápico.

Dentre as estratégias de neuroestimulação , a Eletroconvulsoterapia (perjorativa e erroneamente descrita por muitos como “eletrochoque”) é um método terapêutico consolidado na literatura médica com indicação para casos refratários e/ou graves (com risco emergente de morte por doença mental) ; realizada em ambiente hospitalar, sob anestesia e seu mecanismo envolve mudanças em neurotransmissores, neuroplasticidade e conectividade funcional.

Impedir a realização do procedimento – quando preenchidos os critérios de elegibilidade – é como negar acesso ao uso de desfibrilador ao paciente que corre risco de morte por parada cardíaca.

Internação psiquiátrica em ambiente hospitalar deve estar entre os moldes de rede de atenção. Indivíduo com transtorno mental grave, que em períodos de crise, coloque sua própria vida e/ou a de terceiros em risco de morte, precisam de ajuda médica, e dentro de ambiente seguro, contando com assistência multidisciplinar qualificada, por período auto-limitado naquele ambiente. Assim como em outras especialidades, que assistem o sujeito que está adoecido.

A um indivíduo com pneumonia em insuficiência respiratória grave, com risco de morte, é negada a existência de unidade de terapia intensiva (UTI), antibiocoterapia, intubação, cuidados intensivos médico e da equipe de enfermagem, fisioterapia respiratória … simplesmente pois existe modelo de tratamento para pneumonia ambulatorial / domiciliar (para casos menos graves ?)

Pessoas portadores de transtorno mental grave, sem assistência qualificada, correm maior risco de encontrar como local de acolhida a vida nas ruas, e de sofrerem sanções penais.

Quando abordamos a questão sobre internação de crianças e adolescentes, ai entramos em uma seara também perversa, com pacientes, famílias e profissionais que os assistem.
Eu, como inumeros outros colegas da área, vivenciamos situações de extrema angústia e apreensão : ter que conduzir crianças e adolescentes gravemente psicóticos, com planejamento suicida/ homicida, com auto-agressão severa… sem acesso a internação! Sofrimento também a nós, que temos respeito e desejamos o melhor a quem nos confere a confiança.

Fiz minha residência em psiquiatria infantil em um serviço de referência nacional (IPq USP) e tive a experiência de modelo de enfermaria que nos trazia satisfação de atender: familiar acompanhando o menor por 24horas; equipe multidisciplinar atuante; acesso a discussões de equipe; suporte pedagógico e sala de aula para os menores internados… enfim! É de modelos assim que nossas crianças e adolescentes gravemente enfermos precisam e merecem, durante o período que precisamos mantê-los em segurança e fazer o ajuste de seu tratamento, para seguirem a vida “lá fora” da melhor maneira possível.

Vale lembrar que assumir a possibilidade de internação psiquiatra hospitalar auto-limitada nada tem a ver com modelo asilar … não é morar em hospital. Que sejam divididas as responsabilidades com poder público e os setores de assistência social responsáveis.

Torço para que os expertises que traçarão os rumos de assistência de saúde mental em nosso país possam fazer a tomada de decisões baseadas sim, em aspectos socio-históricos, mas também em fundamentos neurobiologicos, abordagens baseada em evidência científica e experiência clínica.

Para aqueles que ainda não entenderam : defender a hospitalização auto-limitada para controle de crise definitivamente NÃO é apoiar modelo manicomial ! Óbvia e absolutamente NINGUÉM está sugerindo que se retorne as condições de assistência anteriores. É indiscutível que a reforma psiquiátrica trouxe avanços no modelo assistencial mas negar que se faz necessário mudanças é sinônimo de ignorância e alienação.

Doença mental não é invenção de psiquiatra. Se alguém tiver dúvida disso, recorra aos livros de história ; e se for profissional da área de saúde, estão convidados a estagiar em setores de saúde mental e entrar em contato com o nível de sofrimento do paciente portador da doença e de sua família. Aí sim, você poderá ser um formador de opinião de ideias que merecem ser difundidas e debatidas.

Ana Paula Martins dos Santos
Psiquiatra

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