Todas as vacinas hoje disponíveis contra a covid-19 evitam o adoecimento, mas não impedem a infecção e transmissão do vírus, daí a necessidade de que, no cenário atual brasileiro, se mantenha o distanciamento social, o uso de máscara e a higienização constante das mãos. Essa foi a mensagem que o presidente do Departamento de Imunizações da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) e diretor da Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm), Renato Kfouri, ressaltou em participação na plenária do Conselho Federal de Medicina (CFM), em abril.

Por mais de duas horas, o pediatra e infectologista participou da plenária online tirando dúvidas dos conselheiros federais sobre os diferentes tipos de vacinas. Além de explicar as quatro plataformas atualmente utilizadas para a fabricação das vacinas covid-19 (vírus inativado, vetores virais, genéticas e proteicas (subunidades), ele explicou que ao contrário das vacinas contra sarampo, rubéola, caxumba, varicela e febre amarela, as vacinas covid-19 não são esterilizantes. “Ou seja, são boas para prevenir doenças, mas não tão boas para o controle da circulação de um germe ou vírus na comunidade. Protegem o indivíduo, mas têm pouco papel no controle da transmissão da doença”. São exemplos de vacinas esterilizantes as da meningite, pneumonia e sarampo.

Kfouri explicou que a emergência causada pelo SARS-CoV-2 levou a indústria farmacêutica a optar pela fabricação de vacinas com capacidade de diminuir formas graves da doença. Das vacinas atuais, há alguma evidência de que as de RNA possam reduzir as taxas de transmissão dos assintomáticos, “mas os dados são ainda muito preliminares”, ressaltou. De toda forma, para Kfouri, as vacinas atuais vão provocar uma redução da transmissão viral. “Com menos doentes sintomáticos, menor é a quantidade de pessoas tossindo e espalhando o vírus na comunidade. A vacina pode não ser esterilizante, mas vai impactar na transmissão”.

Falha vacinal e eventos adversos – Segundo Kfouri, a porcentagem esperada de falhas para as vacinas covid-19 é pequena. Essas falhas podem se apresentar na forma de infecções leves, moderadas ou graves. Apesar de, nos estudos clínicos, nenhum dos vacinados ter adquirido a forma grave da doença, o infectologista acredita que intubações e mortes poderão acontecer entre os vacinados agora. “Quando você registra, por exemplo, 100 mil a 80 mil novos casos por dia, vamos ter mais falhas vacinais do que se tivesse circulando 500 casos por dia. É óbvio. Pela falha vacinal, 0,01% dos vacinados vão ter formas graves da doença, o que vai resultar em dezenas de casos por dia” previu. “Nenhuma vacina é 100% eficaz contra formas graves”, completou.

O médico também disse que são esperados alguns eventos adversos relacionados à vacina covid-19. Ele lembrou que a vacina febre amarela, por exemplo, causa, a cada 750 mil doses aplicadas, um fenômeno parecido com a doença, chamado doença viscerotrópica. Já a vacina da pólio, para cada um milhão de doses aplicadas, há um caso de paralisia associado à vacina. “Mas você vai prevenir muito mais casos de pólio selvagem do que eventualmente o evento adverso”.

No caso da covid-19, em um mês de aplicação da vacina no Brasil, de 18 de janeiro a 18 de fevereiro, quando foram aplicadas oito milhões de vacinas, foram reportados 20,6 mil eventos adversos, sendo 430 classificados como graves, caracterizados como necessidade de hospitalização, convertendo-se numa ameaça à vida, abortamentos, invalidez ou morte. Mais de 20 mil foram considerados leves, como febre, dor de cabeça e mal-estar. Para Kfouri, esses números são baixos, já que nesse período foram vacinados, principalmente, os maiores de 90 anos, que têm uma saúde fragilizada.

Em relação aos relatos de eventos trombóticos, associados à trombocitopenia, verificado em vacinados com a AztraZeneca, menos de 500 casos foram reportados no mundo e há, até o momento, um caso suspeito registrado no Brasil. “Não é uma trombose que a gente costuma ver. São duas características importantes, eram fenômenos trombóticos trombocitopênicos e em adultos jovens, a grande maioria mulheres, geralmente duas semanas após a vacina ser aplicada”, explicou.

“Essas tromboses estão mais relacionadas a doenças autoimunes”, destacou. Como segurança, se após tomar a vacina da Oxford e da AstraZeneca, que são de vetor viral, o vacinado apresentar um fenômeno tromboembólico, a segunda dose deve ser feita com outra vacina, de plataforma diferente. Kfouri argumenta que o benefício da vacinação supera e muito o risco. “Para se ter uma ideia, o anticoncepcional, por exemplo, tem um risco cinco vezes maior de fenômenos tromboembólicos do que a vacina. A própria covid-19 tem uma probabilidade de trombose centenas de vezes maior do que a vacina” explica.

O infectologista rebate as críticas de que as vacinas foram autorizadas em tempo recorde e que, por isso, seriam inseguras. “É preciso entender, quando se fala de licenciamento emergencial, de eficácia e de segurança das vacinas, que nós estamos num cenário pandêmico, em um momento de elevada morbi-mortalidade da doença, então a tolerância a eventos adversos é completamente diferente do que em outro cenário”, argumentou. Mesmo assim, até o momento, a quantidade de eventos adversos e de falhas vacinais registrados foi pequena, segundo o especialista.

Para o especialista, é impossível prever quando será possível atingir a chamada imunidade de rebanho. “Hoje é muito cedo para falarmos em imunidade de rebanho. Primeiro porque não temos vacinas altamente eficazes no aspecto esterilizante. Segundo porque não sabemos que escape essas novas variantes vão ter, pois podemos ter 80% de imunizados e uma variante escapar. E terceiro porque não sabemos qual é duração da imunidade conferida pela infecção natural”, explicou. Diante do quadro atual, “num momento de taxas elevadíssimas de transmissão do vírus no país como vivemos hoje, é preciso mantermos as medidas preventivas, como o uso de máscaras e o distanciamento social”, defendeu o médico.

CONFIRA TRECHOS DA APRESENTAÇÃO DE RENATO KFOURI

VACINAS ESTERILIZANTES

Algumas vacinas são capazes de, além de prevenir a doença, prevenir a infecção. Ou seja, induzem taxas de anticorpos tão altas que mesmo o indivíduo tendo contato com o vírus ou bactéria não se infecta. Previnem infecções as vacinas contra sarampo, rubéola, caxumba, varicela e febre amarela. Essas são as chamadas vacinas esterilizantes. Outras vacinas não têm esta capacidade: coqueluche, meningite, pneumonia, tuberculose. São vacinas onde você recebe a vacina, fica prevenido de adoecimento, especialmente de formas graves, mas não impede de ter contato com este vírus ou bactéria e ser um carreador assintomático. As vacinas contra o SARS-CoV-2, tanto as disponíveis no Brasil como nos outros países, não são esterilizantes: evitam que a pessoa adoeça, principalmente nas formas graves, mas não impedem que ela fique infectada e transmita o vírus. Para as vacinas de RNA, como a da Oxford, há alguma evidência de que há uma redução nessa taxa de transmissão dos assintomáticos. Mas os dados são ainda preliminares.

PROTEÇÃO OFERECIDAS PELAS VACINAS ATUAIS

Se a pessoa fez o esquema vacinal adequado, após duas semanas da segunda dose, é pequena a possibilidade de que ela adoeça de covid-19, raramente terá uma forma moderada da doença e dificilmente vai desenvolver formas graves que levem à hospitalização, intubação e morte. Esta última possibilidade é raríssima. É isso o que as vacinas prometem entregar. Casos de mortes não foram demonstrados nos estudos clínicos, mas certamente aparecerão na vida real. Raríssimos indivíduos vacinados poderão desenvolver a forma grave da doença. Para cada milhão de doses vacinadas, alguém vai acabar adoecendo de forma grave. Na hora que vacinarmos todo o grupo de risco, cerca de 70 milhões de pessoas, talvez tenhamos uma pequena porcentagem que evoluam mal. Infelizmente isso vai acontecer, mas é uma porcentagem muito pequena.

FALHA VACINAL

A falha vacinal acontece em poucos casos. Caso após duas semanas da segunda dose a pessoa tenha a infecção, podemos dizer que houve falha vacinal. No caso da covid-19, falha vacinal para doença leve é razoavelmente esperada; para doença moderada é de 20%, se a pessoa tomou Coronavac. Agora, teoricamente, o indivíduo não deveria desenvolver formas graves, já que os estudos clínicos não apontaram esses casos. Serão fenômenos raros, mas nenhuma vacina é 100% eficaz para as formas graves. Mas é preciso contextualizar: quando você registra 100 mil a 80 mil novos casos por dia, vamos ter mais falhas vacinais do que se tivesse circulando 500 casos por dia. É óbvio. Vamos ter uma proporção maior em números absolutos de indivíduos vacinados doentes porque temos muitos casos. Pela falha vacinal, por exemplo, se 0,01% dos vacinados desenvolverem formas graves da doença, teremos dezenas de casos por dia de formas graves entre vacinados. Esse é um número que a gente deve esperar. Um fenômeno extremamente raro dentro de um contexto grande de circulação, acaba parecendo, numericamente, em números absolutos, uma quantidade não desprezível.

EVENTOS ADVERSOS

Entre 18 de janeiro a 18 de fevereiro, quando cerca de 8 milhões de vacinas foram aplicadas no Brasil, entre primeira e segunda dose, foram reportados 20,6 mil eventos adversos. Desses, 20.171 foram classificados como Não Graves, como febre, dor de cabeça e mal-estar, sem grandes diferenças entre a AstraZeneca e a Butantan. Tivemos 430 eventos classificados como graves, que são os casos em que o indivíduo necessita de hospitalização, a qual pode ser convertida numa ameaça à vida, abortamentos ou com algum grau de invalidez definitiva, ou morte. Essa incidência é considerada muito pequena. O universo feminino foi maior, até porque vacinamos muito mais profissionais de saúde. As faixas etárias com os eventos não graves foram os mais jovens, concentrando os casos mais graves entre os acima de 60 anos, sendo que 93% dos óbitos foram entre quem tinha de 80 a 84 anos, em indivíduos moradores de instituições de longa permanência. Esses 430 eventos graves foram subsequentes à vacina, mas não, necessariamente, causados por ela.

EVENTOS TROMBOEMBÓLICOS NA VACINA DA ASTRAZENECA

Apresentam duas características importantes: são fenômenos tromboembólicos trombocitopênicos e em adultos jovens, a grande maioria mulheres, geralmente duas semanas após a vacina ser aplicada. Essas tromboses estão mais relacionadas a doenças autoimunes. Os pesquisadores descobriram que essas pessoas tinham ativação de um anticorpo anti TF-4, fator plaquetário 4, que mimetiza uma doença autoimune. É uma doença muito semelhante à trombocitopenia induzida por heparina, uma reação de hipersensibilidade do tipo 2. Também foram relatados casos semelhantes com a vacina da Jansen, que também é de vetor viral. Depois de 7 milhões de doses aplicadas nos Estados Unidos, seis casos do mesmo fenômeno foram observados, também em mulheres, também duas semanas depois e também em trombos em locais não habituais, a trombose mesentérica, o que levou a uma revisão da literatura sobre esse aspecto. Com isso, a Anvisa e o fabricante passaram a incluir precauções em bula. A partir de então, passou a fazer parte da notificação como evento adverso muito raro, mais ou menos um caso para 1 milhão de doses aplicadas. Então, hoje este é um fenômeno que parece relacionado à vacina, que induz uma doença autoimune, cujo gatilho é a vacina de vetor viral. É um evento extremamente raro, em indivíduos predispostos. Nenhuma agência regulatória contraindica o uso da vacina por conta desses eventos.

VACINAÇÃO EM PACIENTES JOVENS PÓS-AVC

Como se tratam de vacinas inativadas, tanto a Coronavac como a da de AstraZeneca, a recomendação é para utilizá-las em todos os pacientes com comorbidades. Em casos de doenças imunomediadas, uso imunobiológicos, quimioterapia, radioterapia, transplantados, HIV, não há nenhuma contraindicação do uso dessas vacinas nessas populações mais vulneráveis. Em relação aos eventos trombóticos prévios, seja AVC, TVP, TEP, qualquer fenômeno, é preciso caracterizar se esses fenômenos trombóticos prévios não foram plaquetopênicos, não foram de doença autoimune. O que sabemos desses eventos trombóticos é que são fenômenos trombóticos trombocitopênicos associados ao fator antiplaquetário 4. Então, se você não conseguiu caracterizar, se atendeu um paciente com uma história de uma trombose mesentérica prévia, que não foi você que cuidou, ou de um AVC de uma jovem que teve um quadro de trombo, que também não foi você que cuidou, eu acho que é prudente, sim, você recomendar uma vacina de não vetor viral. Mas se você tem um acompanhamento desse quadro, se a sua paciente teve um fenômeno trombótico que não foi plaquetopênico, que não foi autoimune, tem outra causa para esse fator trombótico, mesmo que seja idiopático, não vejo porque, nesse momento, você recomendar uma vacina específica.

SEGURANÇA DAS VACINAS DE RNA

Ainda precisamos construir uma história para as vacinas covid-19, mas, no geral, quando falamos de vacina, estamos tratando de um campo absolutamente seguro com uma margem de erros muito baixos e de preocupações muito pequenas. A história pelo menos até agora se mostrou assim. A ciência evolui com o tempo. Quantas vezes já utilizamos drogas e depois retroagimos? Mas são raras as vacinas onde isso ocorre. Lembro de uma, contra o rotavírus, chamada Rotashield, da Pfizer, que foi retirada de mercado após ser licenciada. No geral, as vacinas são produtos bastante seguros. Tanto é assim, que tivemos relatos impressionantes de erros na aplicação que não resultaram em eventos adversos. Casos em que se injetou um frasco inteiro de dez doses de febre amarela achando que era uma dose só, ou de injeção de uma vacina oral, entre outros. Num país com 38 mil salas de vacinas, que aplica 300 milhões de doses por ano e que tem uma grande rotatividade dos profissionais de saúde, os erros são inevitáveis. Mesmo assim, em 30 anos que trabalho com imunização, nunca vi eventos adversos importantes devido a esses erros de administração. Então a gente está falando de produtos extremamente seguros de uma forma geral.

RAPIDEZ NA APROVAÇÃO DAS VACINAS X SEGURANÇA

As vacinas foram desenvolvidas com rapidez porque a indústria se valeu de plataformas já desenvolvidas para outras vacinas de coronavírus, como a SARS e a MERS. Também se valeu de investimentos sem precedentes e do sequenciamento genômico, que foi obtido menos de um mês depois da primeira notificação de infecção pelo SARS-CoV-2. Essas plataformas se valeram muito de parcerias com grandes universidades e entre grandes concorrentes da indústria farmacêutica. Agora o que talvez mais acelerou foi a produção sob risco. A partir de julho todos os laboratórios já estavam produzindo essas vacinas nas suas plantas, construindo suas fábricas, a despeito de saber se os testes de fases II e III iam dar certo, ou não. A ponto de no dia seguinte à aprovação dessas vacinas, ter início a vacinação. Antes as vacinas eram aprovadas para que fossem montadas as fábricas e só cerca de dois anos depois elas começavam a ser aplicadas. Houve uma abreviação necessária que os tempos de pandemia exigem.

Outra coisa foi em relação aos dados necessários para o licenciamento. Normalmente, para se licenciar uma vacina é necessário que se conheça a eficácia em diabéticos, em cardiopatas, em idosos, em crianças, em grávidas e se saiba a duração de proteção. Se tivéssemos de fazer esse acompanhamento, que dura no mínimo dois anos, num cenário de pandemia, seria inviável. Por isso, foi criada a figura da licença para uso emergencial. Nós estamos numa emergência de saúde pública, não posso querer conhecer todos os detalhes de uma vacina depois de dois anos para licenciar. O que eu vou ter de mortos em cima disso, de sobrecarga, não faz sentido. Diante deste cenário, a OMS criou critérios mínimos de licenciamento que foram a prevenção de formas graves da doença, de no mínimo de 50%, o perfil de segurança mostrando não eventos adversos no curto prazo e um seguimento mínimo de quatro meses. E assim as vacinas foram licenciadas, olhando para este cenário emergencial. A gente não faz isso no licenciamento de uma vacina num cenário normal.

As vacinas foram licenciadas como uso emergencial e aí eu chamo a atenção para um aspecto muito importante, que é a fase IV, que nós chamamos de farmacovigilância. A vigilância pós-licenciamento. Nós estamos licenciando um produto sem saber tudo dele, porque nós estamos em uma situação de emergência em saúde pública. Por isso temos de acompanhar de perto. Começou a aparecer uma trombose, vamos investigar. Vamos precisar ter milhões de pessoas vacinadas para aprender em termos de segurança de eventos muitos raros.

Nenhuma vacina é licenciada com milhões de indivíduos em estudos clínicos. Licencia-se com dezenas de milhares. Então, esse é o cenário. Aliás, não só com vacinas, mas com qualquer droga. O risco-benefício é a balança. O pior é que entramos num cenário favorável ao espalhamento de fakenews pelos anti-vacinistas. Alguém vai mostrar um indivíduo que tomou as duas doses e está intubado. Vai acontecer. Ninguém vai mostrar os milhões de intubações prevenidas obtidas com a vacina. Eventos adversos vão ocorrer, mas o número de doentes graves e de mortes evitadas é infinitivamente superior. Se você for ler a bula de um corticoide, você não o toma. Tem muito mais efeito colateral naquele corticoide que se toma diariamente do que em qualquer uma dessas vacinas.

LICENCIAMENTO DAS VACINAS NO BRASIL

Não só a Anvisa, mas todas as agências mundiais, estão usando a submissão contínua para analisar as vacinas covid-19. Com isso, elas deixam de receber um pacote final para ir recebendo os dados da fase pré-clínica, fase I, fase II, fase III, acelerando, assim, os processos de avaliação. Quatro vacinas estão nesse processo de submissão contínua no Brasil. Duas delas estão na fase de registro definitivo no país, que são a AstraZeneca e a Pfizer. Uma delas tem o registro de licença para uso emergencial, que é Sinovac do Butantan. A da Jansen está apresentado agora seus dados e em breve deve sair o registro. A Gamaleya, a Covaxin e a Novavax ainda não submeteram os dossiês completos.

NOVAS VARIANTES

Há sinais indiretos de que as vacinas funcionam para as novas variantes, mas as ferramentas não são muito boas. Para avaliar se uma vacina funciona com as novas variantes, fazemos um pseudovírus com as novas cepas, colocamos no laboratório e pegamos o anticorpo de quem foi vacinado. Colocamos dentro de uma placa, ou de um tubo de ensaio, e analisamos se aquilo neutraliza. Ora, nossa resposta imune é muito mais do que um anticorpo neutralizante filtrado do plasma. Temos imunidade celular e a resposta inata. Então, esses métodos são limitados para a gente avaliar se realmente essas variantes vão escapar, ou não, do nosso sistema imune. Usando essa única ferramenta disponível, estudos com a Coronavac e a da Oxford mostraram haver pouco impacto na eficácia das vacinas em relação à P1. Mas temos que ver na vida real. Se começarmos a ver indivíduos adequadamente vacinados adoecerem, ou não. Este será o melhor indicativo. Dados de um estudo em Manaus sugerem que a proteção conferida pela Coronavac para a variante P1 está mantida.

EXAMES PARA DETECTAR SE A PESSOA ESTÁ PROTEGIDA

Não há nenhuma indicação de sorologia pós-vacinação. O que existe hoje no mundo para avaliar se a pessoa tem proteção, ou não, são testes de anticorpos, mas não sabemos qual é o nível de anticorpos que a pessoa precisa ter. Há um exame de imunidade celular, não comercialmente disponível, que poderia auxiliar. A dosagem de anticorpos neutralizantes também não são parâmetros fieis. Talvez seja uma das poucas ferramentas que a gente tem, mas é apenas um indicativo. Esses exames mais confundem do que ajudam. Por isso não indicamos sorologias pós-vacinação de sarampo, rubéola, coqueluche para saber se a pessoa está protegida, ou não. Tanto é assim que a Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm) e a Associação Médica Brasileira (AMB) fizeram notas técnicas alertando para a não utilidade de você recomendar algum tipo de avaliação sorológica pós-vacinação de covid-19. A ciência está tentando validar um teste de avaliação de imunidade celular, mas a performance está ruim.

DOENÇA PRÉVIA E MELHORA DA IMUNIDADE

Indivíduos vacinados que tinham tido a doença previamente apresentaram um aumento nos seus títulos de anticorpos algumas dezenas de vezes a mais após tomarem a primeira dose da vacina. Alguns países estão adotando dose única para quem já teve a doença no passado. Mas esse é um terreno pouco conhecido, especialmente num cenário de variantes novas circulantes. A gente não sabe que impacto terão essas vacinas, ou essa duração da proteção, em função dessas novas variantes, que eventualmente podem escapar da resposta imune induzida, pela infecção prévia ou pela própria vacina.

RESISTÊNCIA DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES AO VÍRUS

A principal explicação, ao meu ver, é a presença do receptor que liga o vírus à proteína S, já que ele se expressa com muito menor intensidade no tecido pulmonar das crianças e adolescentes. Então esse seria talvez o principal fenômeno marcador de uma proteção para esses indivíduos. Há outras explicações, como o sistema imune mais preparado, em decorrência de exposições mais recentes a outros coronavírus, que são os resfriados mais comuns na infância ou ainda uma melhor resposta imune inata em crianças.

SEGUNDA DOSE EM INFECTADOS APÓS VACINAÇÃO DA PRIMEIRA DOSE

Sim. Essa pessoa deve completar o esquema vacinal, mesmo tendo se infectado entre a primeira e a segunda dose. O intervalo deve ser de 30 dias a partir do início dos sintomas do quadro que ele teve, não de 30 dias da vacina anterior que ele tomou. Mesmo que isso acarrete um intervalo maior entre a primeira e a segunda dose, não tem problema. Aliás, se a pessoas teve a covid-19 antes de tomar a primeira dose, deve esperar os 30 dias após o início dos sintomas para tomar a vacina. É essa a recomendação do Ministério da Saúde e da OMS.

No cenário atual de alta propagação, o que tem causado muita confusão é o indivíduo que tomou a vacina hoje e adoeceu com três ou cinco dias, ou entre a primeira e a segunda dose, ou logo após a segunda. Tem muita gente se infectando e consequentemente essas infecções vão ocorrer no curso das etapas de vacinação. Ou porque a pessoa já estava com a doença incubada e adoeceu após a primeira dose, ou ainda porque a vacina não cumpriu sua eficácia entre a primeira e a segunda dose, ou porque a vacina falhou após a segunda dose. Todos os cenários são possíveis e individualmente a gente deve avaliar cada caso individualmente.

VACINAÇÃO EM CRIANÇAS

As crianças não são grupo prioritário em nenhum país do mundo. Quem está começando a vacinar adolescentes, como Israel e alguns estados americanos e países europeus, é porque já vacinou todos os seus idosos, todos os portadores de doenças crônicas, todos os seus trabalhadores de serviços essenciais. Eles podem pensar hoje em ter outra estratégia que não prevenção de formas graves e redução de danos.

A única vacina que se submeteu para registro no FDA americano foi a Pfizer, a partir de 12 anos. Os estudos em lactentes estão começando, mas eles são muito incipientes ainda. Não se pensa em vacinar esse grupo, não só pela necessidade, mas também pela falta de dados entre crianças e adolescentes. No caso brasileiro, vamos seguir o Plano Nacional de Imunização, onde as crianças não estão incluídas neste momento.

VACINAÇÃO EM GRÁVIDAS

Cada vez mais se identifica a gestação como fator de risco. O fato de estar grávida aumenta em três a cinco vezes o risco de hospitalização, intubação e morte da mulher comparado com mulheres não-grávidas. A influenza na gravidez também aumenta muito o risco de a gripe ter um desfecho desfavorável. Além do parto prematuro, que é outra consequência para o bebê também. Se a gente está indicando a vacina porque o indivíduo é diabético ou tem doença hepática, a gente também deve indicar porque a mulher está grávida. É um fator de risco tão importante quanto essas doenças crônicas.

Estudos feitos até agora indicam que a vacinação é extremamente segura, já que as vacinas são produzidas a partir de plataformas inativadas, como são as vacinas contra coqueluche, gripe e tétano, que são vacinas aplicadas nas grávidas, sem riscos.

Na vacinação entre grávidas, discute-se evitar o primeiro trimestre, ou não, ao meu ver ela poderia ser aplicada em qualquer momento da gestação. Outras discussões sobre se haveria preferência por uma ou outra vacina deverá ser feita, porém o importante será vaciná-las. Podemos discutir a vacina, o trimestre da gravidez, algum tipo de segmento diferencial de pré-natal dessas grávidas vacinadas, mas eu acho que elas devem sim ser vacinadas.

TERCEIRA DOSE DA VACINA

Algumas tentativas estão sendo feitas para tentar melhorar a resposta imune, especialmente em relação a novas variantes. Uma delas é dar a terceira dose da vacina, outra é fazer vacinas multivalentes, como a da gripe, que coloca várias variantes numa mesma vacina. Uma terceira é aumentar a quantidade de antígenos, para ver se dessa forma há uma melhoria da resposta imune. Porém, não há nenhuma evidência para recomendarmos a terceira dose de nenhuma das vacinas hoje licenciadas.

EFEITOS INESPECÍFICOS DE OUTRAS VACINAS

Na vacinologia, é conhecido o que chamamos de efeitos inespecíficos das vacinas. Ou seja, eu dou uma vacina contra sarampo e acabo reduzindo um pouco a chance de o indivíduo adoecer de gripe, de outras doenças. O preceito que trás disso é o chamado treinamento imunológico. Então, quando você utiliza especialmente vacinas com componentes vivos, como a pólio oral, o BCG, o sarampo, há, na teoria, uma melhora, um treinamento do seu sistema imune que te previne, ou te ajuda a prevenir de formas graves, de outras doenças. Baseado nesses preceitos, é que alguns estudos estão sendo conduzidos com estas vacinas para ver se, de alguma maneira, o uso dessas vacinas protegeria o indivíduo de formas graves da covid-19. Não há nenhum dado até o momento que permita essa recomendação. A primeira informação sobre isso foi um press release sobre um estudo bastante incompleto. É equivocada a recomendação de vacina de sarampo, como é equivocada a vacinação de pólio ou BCG para melhorar a imunidade para covid-19.

INÍCIO DA VACINAÇÃO POR PESSOAS EM IDADE PRODUTIVA E MAIS EXPOSTAS AO CONTÁGIO

Para se ter sucesso nessa estratégia de vacinar quem mais transmite para assim proteger indiretamente quem está mais vulnerável ao vírus, eu precisaria de três fatores: primeiro ter vacina para todo mundo, o que não temos. Segundo, eu precisaria de uma cobertura vacinal elevadíssima, acima de 80 a 90%, para reduzir a transmissão, e terceiro eu preciso de vacinas que sejam esterilizantes. Por isso que essa não é a melhor estratégia. E o mundo inteiro tem vacinado a partir dos grupos prioritários. A Indonésia começou vacinando os seus adultos jovens, mas já reverteu e está vacinando os grupos de risco porque não tem vacina para todo mundo. Acho que nem se tivéssemos vacinas à vontade, não começaríamos pelos adultos jovens pois o risco de adoecimento, morte e de saturação do sistema de saúde não passam por isso.

APLICAÇÃO DE VACINAS DIFERENTES

É preciso que se façam estudos com a aplicação de vacinas diferentes. Primeiro, porque deve acontecer o desabastecimento em muitos países. A pessoa começa o esquema vacinal com um produto, que falta no momento de tomar a segunda dose. O que você vai fazer com esses indivíduos parcialmente vacinados com a primeira dose? Então, isso hoje é uma necessidade, talvez não no Brasil, que tem um esquema de produção e de transferência de tecnologia, mas tem muitos países que contam com doações, que vão receber a vacina disponível. É preciso conhecer dados de segurança e de resposta de esquemas alternativos, esquemas heterólogos, usando um produto na primeira dose e um produto na segunda dose. Outra razão é que essas trocas já estão acontecendo com algumas vacinas e estão gerando, eventualmente, respostas melhores. A primeira dose pode estimular o meu sistema imune com uma vacina de células inteiras, de vírus inteiro inativado, e a segunda, com uma vacina de RNA mensageiro, por exemplo, pode trazer mais benefícios do que você usar duas doses da mesma plataforma. Há um estudo combinado entre a vacina da Pfizer junto com a da AstraZeneca. Também estão realizando intercâmbios semelhantes entre a vacina do Instituto Gamaleya e a AstraZeneca; e entre a Sinovac com a Jansen. Tudo em fase clínica. Não há nenhuma recomendação. Em teoria pode estimular melhor, mas a gente não tem evidência nenhuma para fazer este tipo de recomendação.

TIPOS DE VACINAS

As vacinas covid-19 estão sendo produzidas a partir de quatro plataformas diferentes, o que é outra curiosidade, porque no geral, as vacinas para uma mesma doença usam a mesma plataforma. A vacina do sarampo, por exemplo, independente de quem a produza, são todas de vírus vivo atenuado, assim como todas as vacinas das gripes são subunitárias.

Para a covid-19 são quatro plataformas diferentes: a de vírus inativado, a de vetores virais não replicantes, as genéticas de RNA mensageiro e as proteicas de subunidades. São quatro plataformas que já vinham sendo estudadas para outros coronavírus, do SARS e do MERS, o que facilitou, junto com investimentos sem precedentes, um desenvolvimento mais rápido dessas vacinas.

As vacinas de vírus inteiro são aquelas que a gente já conhece muito bem: cultiva-se o vírus, que é neutralizado, inativado, geralmente por processos químicos, e esse concentrado de vírus mortos dá origem ao Ingrediente Farmacêutico Ativo (IFA), que é a semente da vacina.

As vacinas genéticas, especialmente a de RNA, são uma novidade altamente eficaz. Há uma esperança muito grande na vacinologia que migremos muitas vacinas para esta plataforma. É uma vacina com uma plasticidade enorme. Podemos colocar o RNA onde quisermos. Teoricamente é possível produzir a vacina desejada num curto espaço de tempo. É uma vacina sintética, não há produto vivo nenhum, o que elimina muitos processos de biossegurança. É como fazer fármacos, não existe a necessidade de cultivo de células vivas. Claro que são vacinas extremamente caras, que requerem congelamento, mas são obstáculos a serem superados.

As vacinas de vetores virais, também já vinham sendo estudadas. Há uma vacina licenciada para o ebola com essa tecnologia. Também é usado no tratamento do câncer e de outras doenças. Usamos um adenovírus, um vírus modificado, para levar um pedaço do coronavírus dentro dele. São uns vetores que carregam, como se fossem cavalos de Tróia, levando para o nosso organismo um pedaço do coronavírus.

SITUAÇÃO DAS VACINAS ASTRAZENECA E CORONAVAC

A vacina da AstraZeneca, de vetor viral, usa um adenovírus de chimpanzé para carregar um pedaço do coronavírus. Segundo os dados da pesquisa, que trabalhou com mais de 10 mil voluntários no Brasil, além de usar dados da África do Sul e do Reino Unido, a eficácia média da vacina é de 70%, sendo de 90% entre as pessoas que receberam a segunda dose num intervalo maior e de 62% entre quem foi vacinado pela segunda vez num intervalo menor. Não houve casos graves nos indivíduos que receberam a vacina. Foi mostrado que a vacina já protegia a partir da primeira dose. Todos os casos graves foram no grupo que recebeu o controle. No grupo vacina tivemos dois casos de hospitalização, mas eram recém-vacinados, com menos de 20 dias de vacinação da primeira dose, então não se considerou que este indivíduo estava protegido. E o que a gente viu também é que as pessoas entre 18 a 55 anos tinham a mesma curva de anticorpos de quem tinha acima de 70 anos. A conclusão dos estudos realizados pelos Estados Unidos é semelhante.

O estudo da Coronavac foi feito pelo Instituto Butantan, chamado Profis-Cov, porque envolveu só profissionais de saúde em 16 centros de pesquisa em todo o Brasil. Esse estudo mostrou uma eficácia global de 50,39%. Os estudos não são comparáveis, já que o critério de casos suspeitos foi muito amplo, então, qualquer indivíduo que tivesse uma dor de cabeça ou de garganta foi incluído como caso suspeito, o que fez com que a eficácia global caísse um pouco. E o que eles fizeram? Avaliaram por score de gravidade. 50% foi sobre qualquer forma clínica da doença, de muito leve a formas graves. No caso da necessidade de assistência médica, a proteção subiu para 78%. 31 casos no grupo placebo, versus 7 casos no grupo vacina. No caso de formas mais graves de hospitalização, não houve nenhum caso no grupo vacina e 7 casos no grupo placebo. Estudos realizados no Chile com a Coronavac chegaram a resultados melhores. Com a segunda dose sendo aplicada após três semanas, a eficácia geral pulou de 50% para 62%. No caso de casos moderados, que necessitaram de hospitalização, subiu de 78% para 83%. Também não houve nenhum caso de gravidade maior entre os vacinados.

DIFERENÇAS DE PREÇOS ENTRE AS VACINAS

Em relação ao desenvolvimento dessas vacinas, algumas delas tiveram financiamento público. A vacina de Oxford, desde o começo, se propôs a ser uma vacina de uso mundial, a não ter lucro com a vacina. Quando a AstraZeneca comprou a participação da Oxford, essa relação mudou um pouco, mas o preço ainda é competitivo. Obviamente cada vacina tem sua composição de preço variável, não só no desenvolvimento, mas na planta de produção. De onde ela é feita.

PRODUÇÃO DE VACINAS NO MUNDO

A maioria das fábricas acaba migrando para o sudeste asiático, para a Índia, para a China, onde a manufatura de vacinas é muito barata. O próprio programa brasileiro de imunizações hoje compra vacinas, na maior parte delas, de laboratórios do sudeste asiático, onde o preço é muito menor, já que eles se especializaram e têm produtos de qualidade e de desenvolvimento tecnológico. Essa é uma grande discussão: até quando o Brasil deve investir em produção, em ciência, em tecnologia, em desenvolvimento de produtos nacionais? Quanto custa isso versus comprar produtos tão baratos lá fora, já prontos? Ao mesmo tempo, em cenários como o atual, não é bom ficar à mercê do mercado e das disputas internacionais. Então essa é uma disputa que envolve política pública de investimento em pesquisa e desenvolvimento e investimentos em laboratórios nacionais. Temos um histórico muito bom na produção de vacinas brasileiras, com os dois laboratórios públicos de maior envergadura, o Butantan e Biomanguinhos, que são responsáveis por vacinas de altíssima qualidade, pré-qualificadas pela OMS, como a vacina da febre amarela, sarampo, gripe, tétano entre outras. São vacinas internacionalmente reconhecidas, o que faz do Brasil uma vanguarda. Mas nas últimas décadas, nós paramos de investir. O Brasil deixou de ser um protagonista no desenvolvimento de vacinas, até em função dessa questão mercadológica. Um caminho é a transferência de tecnologia, que a gente tem feito no Programa Nacional de Imunizações. Na última década, nós não incorporamos nenhuma vacina no calendário vacinal do país que não fosse com acordo de transferência de tecnologia. Compramos 10 ou 15 anos de um produtor, com o compromisso dele de transferir a tecnologia para a autossuficiência aqui. Acho que este é um caminho intermediário que o PNI tem feito, que eu acredito que tenha dado bons frutos para nós.

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