No Brasil, o programa desenvolvido dentro de Centros de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas (Caps AD) centraliza a maior parte do tratamento – médico, social e psicológico – oferecida aos dependentes químicos. A estratégia não inclui internação forçada, apenas tratamento voluntário.

     A política defendida pelo governo federal não agrada a todos. Muitas famílias alegam que obrigar o dependente a se tratar é a única forma de protegê-lo. Para muitos especialistas, isso não funciona. Outros defendem múltiplas alternativas. No fim, todos concordam que a rede existente é insuficiente para atender à demanda que, infelizmente, é crescente.

    De acordo com o 2º Levantamento Nacional de Álcool e Drogas (Lenad), divulgado pelo Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Políticas Públicas do Álcool e Outras Drogas em dezembro, cerca de 2,6 milhões de brasileiros usaram cocaína, crack ou oxi no último ano. E cerca de 28 milhões de brasileiros convivem com algum parente dependente químico.

    A rede de atendimento, em todo o País, é formada por 345 Caps AD, sendo que apenas 43 deles funcionam 24 horas. Nessas 43 unidades, há leitos para pacientes (430). Nos outros, é possível ter consultas, participar de atividades laborais, oficinas e receber medicações. A rede é capaz de atender 8,8 milhões de pacientes por ano, segundo o ministério.

    “O problema é tão grave e tem tanto volume, que exige uma rede diversa de diferentes equipamentos, que seja aberta, acolhedora, qualificada e em número suficiente. Não tem nenhum serviço isolado que dará conta de tudo e é um enorme desafio fazer essa rede crescer”, afirma o secretário de Atenção à Saúde do Ministério da Saúde, Helvécio Magalhães.

    Para Fabiana e Daniel, as experiências em comunidades terapêuticas (que têm mais de 4 mil leitos) foram terríveis. “Eu me sentia preso, distante de tudo”, conta Daniel. Os dois dizem que lá não encontravam apoio para “voltar ao mundo real”. Não conseguiam nem lidar com o filho de um ano, que nasceu no auge de consumo de drogas pelos pais.

    Tratamento contínuo – Fabiana e Daniel descobriram o atendimento do Caps em julho. A falta de clareza da população sobre o trabalho dessas unidades – outra crítica dos especialistas – também era deles. “Meu pai queria me internar à força. Viemos juntos aqui e resolvi tentar porque era diferente e eu poderia me tratar junto com a Fabiana”, conta Daniel.

    O casal, que está junto há nove anos, experimentou a droga e o primeiro afastamento real dela juntos também. Depois de duas semanas (tempo máximo de acolhimento permitido em um centro desses) no Caps AD 24 horas de Samambaia, Distrito Federal, eles passaram a morar na Unidade de Acolhimento vizinha ao órgão.

   Existem 90 unidades como essa no Brasil, que atendem cerca de 900 pessoas. O ambiente é como de uma casa. Os moradores definem regras, voltam a cuidar das próprias roupas, quartos, comida. Procuram emprego e, aos poucos, vão se integrando à sociedade novamente. O tempo máximo permitido de estadia numa dessas unidades é de 6 meses.

    Daniel e Fabiana viveram lá por dois meses. Sem a droga, voltaram a fazer planos. Conseguiram emprego, alugaram uma casa, pegaram o filho de volta. Depois de três meses, Daniel teve uma recaída. Levou crack para casa e os dois acabaram com móveis e dinheiro em um mês de uso contínuo de drogas.

    “Nosso problema foi ter esquecido o tratamento. Deixamos de tomar as medicações, de vir às consultas. A gente tinha de ter continuado”, pondera Daniel. Por causa do filho, os dois resolveram tentar novamente. Estavam no acolhimento 24 horas do Caps AD de Samambaia, um dos nove do Distrito Federal. “Deveria ter mais locais como esse”, enfatiza Fabiana.

    Ademário Britto, psicólogo especialista em saúde mental e gerente do Caps AD 2 de Samambaia e da unidade de acolhimento transitório, reconhece que a rede precisa ser ampliada. Ele admite que a quantidade de funcionários do centro (70 pessoas, das quais apenas três médicos) também é pequena para o tamanho da demanda.

    Ele lembra, no entanto, que a nova política de enfrentamento das drogas é recente. OS Caps, ele conta, surgiram em 2001, mas já passaram por transformações. “Provavelmente, vamos fazer mais ajustes. A prática nos mostrará”, afirma. Ele é o responsável da Secretaria de Saúde do DF pela elaboração do plano de enfrentamento do crack e outras drogas.

   No Caps que ele coordena, há atividades para os usuários até as 22h. Oficinas, terapias em grupos, consultas. Depois desse horário, apenas os que precisam de cuidados especiais (seja por causa de uma crise de abstinência ou alguma fragilidade de saúde) dormem no local. Os casos mais graves são encaminhados aos hospitais gerais.

    Mudança de visão – “Durante muito tempo, as pessoas com dependência eram tratadas como loucas e isoladas. O índice de reincorporação dessas pessoas à sociedade era muito baixo. Isso levou a uma mudança, do cuidado no ambiente que essa pessoa vive, para que ela aprenda e lidar com a presença da droga”, comenta.

    Britto não acredita na eficácia das internações forçadas. “O usuário precisa ser o protagonista. Essa visão de controle social em relação à droga faz com que o usuário incomode. E há muita gente que se vale do discurso do cuidado porque quer tirar essa pessoa da frente. Temos uma dívida social muito grande com essas pessoas”, pondera.

    Até outubro, o Ministério da Saúde investiu R$ 1,4 bilhão na construção de Caps, unidades de acolhimento, consultórios de rua e leitos especializados em álcool e drogas nos hospitais comuns em 118 municípios com mais de 200 mil habitantes. “Essa é uma das poucas políticas que não tem contingenciamento de recursos”, garante Helvécio Magalhães.

   O secretário diz que o maior impeditivo para a expansão da rede é a falta de profissionais preparados – psiquiatras, psicólogos, terapeutas, enfermeiros – para trabalhar nessas unidades. Para ele, outros órgãos, como as unidades básicas de saúde e as escolas, terão de ser envolvidos no processo, especialmente em municípios muito pequenos.

    Críticas – Clarice Sandi Madruga, pesquisadora da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e coordenadora do Lenad, diz que política de tratamento hoje é mais generalista do que específica. “Cada indivíduo tem um perfil e vai requerer um tipo específico de tratamento. A generalização é péssima para qualquer área clinica, especialmente nesse caso”, critica.

    Segundo ela, o levantamento com as famílias dos dependentes demonstrou “o desamparo gigante dessas pessoas”. “A nossa rede precisa ser mais conhecida e oferecer um tratamento de continuidade. O serviço não é divulgado e é insuficiente. Muitas vezes, fica em locais distantes, que exigem recursos para o transporte, por exemplo, que eles não têm”, afirma.

    A pesquisadora concorda que é preciso investir mais na qualificação de mão-de-obra preparada para lidar com a dependência química. “É preciso acabar com o estigma de que a dependência química é falha de caráter. As pessoas precisam entender que ela é uma síndrome psicossocial, uma doença que promove mudanças fisiológicas no corpo”, diz.

    Emmanuel Fortes, diretor de Fiscalização e Psiquiatria do Conselho Federal de Medicina (CFM), afirma que o País está vivendo uma “epidemia das drogas”. “A situação está fora de controle e as políticas de segurança pública, saúde, não têm efeito”, opina. O médico afirma que leitos psiquiátricos foram fechados “indiscriminadamente”, o que prejudicaria o atendimento.

    “Houve um fechamento indiscriminado dos leitos médicos em hospitais psiquiátricos, com o argumento de que eram manicômios. Mas isso não é verdade. Os hospitais em funcionamento hoje estão vivendo um drama, porque não são remunerados corretamente. Os equipamentos disponíveis muitas vezes não têm médicos 24 horas”, critica.

    Fortes diz que é preciso criar uma ideia de colaboração para encontrar uma política efetiva e, na visão dele, ainda há muitos conflitos entre os atores envolvidos nas discussões.

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